Festival Velha Joana – Um modelo para a formação e celebração do teatro

por Kil Abreu
Foto: Neres Fotografia

          O Festival Velha Joana, em Primavera do Leste (MT), apresentou, na sua 19ª edição, um panorama humano, estético e formativo raro para um mesmo evento. O centro da coisa toda, de maior importância, é a formação artística no município, desenvolvida em um ambicioso e enraizado projeto.

         Esta avaliação não tem a intenção de esgotar todos os aspectos e frentes do festival, o que demandaria um fôlego, espaço e tempo mais estendidos, dada a diversidade de proposições que acompanhamos neste rico novembro no Mato Grosso. Faremos aqui certos recortes a respeito de algumas recorrências estéticas e de algumas características das três mostras e seus entornos.

          Ainda que haja no Velha Joana uma sessão especial para dar conta dos trabalhos criados nos núcleos de formação teatral da cidade e nas escolas, podemos dizer que o aspecto pedagógico é comum a todas as mostras e estende-se também, por consequência, ao fomento das plateias. Um dos fatores mais estimulantes, aliás, é a maneira como o festival arregimentou o público, em uma estratégia que começa nos cursos e oficinas de teatro, adentra as famílias de crianças pequenas, crianças maiores, jovens, adultos e, adiante, totaliza-se nas salas de espetáculos, com a ampla participação de toda a comunidade.

         É admirável a rede posta a funcionar pelos coletivos que criaram e mantêm o projeto há quase duas décadas – o Grupo Faces, o Faces Jovens e o Primitivos –, com apoio da municipalidade e do governo do Estado. É um circuito virtuoso, de apoios mútuos, certamente justificado em parte pela oportunidade dada de fazer a roda girar aproveitando a paisagem humana mais concentrada em uma cidade de pequeno porte. De todo modo, embora esta seja uma informação importante, certamente não dá conta de justificar todo o sucesso do programa. Uma aventura desse tipo não vingaria se não fosse a militância coletiva e a dedicação apaixonada, possível de ver no trabalho em ato das lideranças. Um modelo inspirador para políticas públicas de cultura que ambicionem o convívio comunitário através da arte.

Foto: Neres Fotografia

Mostra Panorama

          Sem demérito aos grupos convidados e aos grupos da região já artisticamente mais maduros, não há dúvida de que o coração (e o futuro) do festival é a Mostra Panorama, que reúne as cenas criadas nas escolas e núcleos de teatro. Nesta edição, entre os trabalhos sempre efusivos apresentados pelos pequeninos, pelas crianças nem tão pequenas, pelos jovens e adultos, alguns eixos e percepções são mais salientes.

          Houve a recorrência notável do uso do metateatro, ou seja, de montagens que comentavam abertamente o jogo cênico, os modos de fazer. Isso pode parecer mero detalhe, mas não é. Quando assistimos, por exemplo (é só um entre outros possíveis), a uma cena como “Uma leitura não tão dramatizada assim”, apresentada logo no início da maratona, de cara percebemos que os processos formativos têm frescor. Só em um aprendizado livre é possível brincar com a linguagem, e este foi um procedimento presente durante todo o evento. O metateatro nos fala que os encontros foram fluidos a ponto de, aqui e ali, admitirem a existência de “espelhos” dentro dos processos, momentos refratários à sisudez, em que os jogadores e jogadoras puderam ver-se rindo de si, dramatizando a si confortavelmente, enquanto criavam.

          Essa vertente ganhou musculatura nas apresentações dos pequenos. Em montagens sempre surpreendentemente caprichosas e bem produzidas, esse espírito de liberdade criativa foi regente – mas de mãos dadas com a orientação que demarca a brincadeira, as regras, os acordos, as convenções do teatro. Pensemos em “O peixinho sonhador”, “Histórias de lenços e ventos”, “A revolta dos ventos”, para imaginar a dedicação de profs. e profas. nos ensaios, dia a dia, estimulando a criatividade das crianças e jovens ao mesmo tempo em que os faz perceber que as escolhas da imaginação, como na vida, precisam de arranjo e de alguma disciplina. Que sorte a desses meninos e meninas. O palco oferece a eles e elas uma vivência que adiante lhes valerá não só como musculatura artística, mas também como combustível para a convivência saudável e respeitosa, para a valorização das escolhas, para o orgulho que vem do trabalho realizado junto aos outros. Para a solidariedade, enfim.

          Nessa linha, entre os temas abordados nos teatros dos menores sobressaíram-se os  conflitos que pediam decisões e, muitas vezes, também a questão da amizade (muito recorrente) e da colaboração coletiva para a solução dos problemas. Pensemos em cenas como “O cachorro Basset e a gata persa da casa vermelha da rua de baixo” (um Romeu e Julieta em forma de fábula), ou em “Bruxas e o sumiço da vassoura”; “Maria de chapelão – de Maria para Maria”; ou ainda “Heróis da galáxia – batalha para salvar os papais”.

          Mesmo quando uma ou outra dramaturgia aproximou-se (por quê? Influência do modelo televisivo?) de algum sentimento dramático sem volta, prevaleceram as pulsões de vida. Assim, entre princesas, heróis e anti-heróis, animais falantes, personagens históricas revividas e uma grande variedade de outros personagens, a Mostra foi um grande festival de dissensos atuados e resolvidos das maneiras mais inusitadas possíveis, mas quase sempre tendo como ponto de chegada uma visão colaborativa diante dos problemas que o mundo coloca. É uma lição comovente de esperança ali onde mais precisamos dela e enquanto ainda podemos acalentá-la.

          Entre os trabalhos, todos sempre em busca do melhor acabamento, alguns se destacaram pelo empenho da molecada, mas também, supomos, pelo talento dos orientadores e orientadoras. Neste caso, lembramos, por exemplo, de “Zum zum zum ou ensaio sobre o tempo ou Colmeia”, em que o conjunto dramaturgia–atuações–elementos visuais alcança aquele ponto em que a brincadeira organizada se aproxima do melhor que o teatro para crianças pode oferecer. Seria ainda mais efetivo se a narrativa não se tornasse, de um momento para outro, refém de uma tarefa estranha a ela – algo a ver com lições de educação para o trânsito. É apenas um exemplo, mas não é fato isolado. É uma recorrência encontrada em muitas cenas, que, descobrimos durante o festival, está ligada à necessidade de responder a tarefas institucionais extra-artísticas. O que nos leva a uma velha questão: no teatro se pode tudo, mas às vezes o palco reclama quando lhe pomos o mundo inteiro sobre as costas. A criação é sempre um exercício radical de operar escolhas.

          Ainda na Panorama, as cenas dos jovens tendiam a se aproximar, como é esperado, ora de assuntos existenciais, como em “E agora?”, um suspiro pós-adolescente em busca da sua razão de ser; ora de assuntos sociais que beiram o protesto, como em “Antígona recortada” e outros trabalhos que tematizaram questões de classe, raça e gênero.

Mostras Encontros da Velha e Em Pauta

          Daqui em diante, os teatros, já na forma de espetáculos, a maioria para o público adulto, ganharam autonomia através de uma pauta também relativamente identificável. Não nos estenderemos muito, considerando que uma parte dos trabalhos já ganhou críticas específicas.

          Antes de tudo, é preciso dizer que a curadoria caprichou. O trabalho de curadoria, em qualquer festival, é sempre em torno de apostas, mesmo quando os espetáculos escolhidos já foram vistos e mostraram-se exitosos. É que o teatro é arte viva e as plateias não são iguais. Por vezes, o que comove o público em São Paulo não provoca interesse em Belém ou no interior do Mato Grosso; daí o desafio para curadores e curadoras. O teatro diz muito não só quando funciona, mas também quando fracassa. É claro, queremos sempre que ele diga muito enquanto arregimenta as plateias. Por isso, é importante notar que esta edição do Velha Joana foi supimpa. Não nos ocorre nenhum trabalho que não tenha mobilizado, de alguma forma, o público de Primavera do Leste (alguns por motivos estranhos a este crítico, mas pouco importa).

          Houve um bloco de montagens que têm em comum o interesse pelas relações entre liberdade e contingência ou, dito de outra forma, entre a apresentação de demandas relacionadas a alguma forma de queixa da sociabilidade e os respectivos entraves diante do desejo. De pronto lembramos das pratas da casa, três trabalhos de Primavera do Leste: “O menino inventador” (Grupo Primitivos, que abriu o festival), “Sinhadores” (Grupo Teatro Faces) e “A gente cabe, mas se esquece” (novamente o Primitivos, no quase ensaio de um “Hair” mato-grossense). Do barroquismo cênico do Faces ao reclamo juvenil em torno do bullying escolar do Primitivos, aponta-se uma cena com a preocupação do teatro social e o frescor juvenil do protesto.

          Em outro eixo, ainda mais decididamente político, vimos, entre outros, desde o retumbante teatro experimental do paulista Grupo Pano (“Cerrado!”) até o excelente “Desfazenda – me enterrem fora desse lugar”, libelo antirracista do coletivo O Bonde (SP), a nos lembrar de 500 anos de miserável e violenta cultura política. No meio, dois manifestos que remetiam à luta de classes, para os pequenos: “Os Saltimbancos”, na vigorosa direção de Hugo Rodas, mantida pela Agrupação Teatral Amacaca (DF), e “Bertoldo – o tubarão que queria ser gente”, com o ótimo Buia Teatro (AM). São montagens que, além da forte teatralidade, fazem muito bem a um festival que acontece em uma das regiões mais conservadoras do país. Fazem bem não porque trazem alguma razão insuspeita, mas porque podem ajudar a diversificar, a oxigenar o debate nas direções que interessam.

          As políticas identitárias também estiveram bem representadas através de “Sebastião”, do amazonense Ateliê 23; e da performance dirigida pela primaverense Alice Anayumi, “Alegorya – o desfile”. Nessa área, não se pode deixar de citar a presença da própria Alice como apresentadora das sessões, em seus figurinos sempre marcantes e sua personalidade empática e afirmativa. Alice é uma vitória.

          A cultura popular, ainda pouco representada, esteve na palhaçaria do Ducafundó,  grupo da vizinha Rondonópolis que trouxe “Tem picadeiro na praça”, um espetáculo de entradas inspiradas no circo tradicional; e o cativante “Bicho alumbroso nas entranhas do encanto”, da cearense Trupe Motim de Teatro – um trabalho muito bonito, enraizado no popular e com posição crítica quanto à sobrevivência do imaginário dos andares de baixo.

Mediações, equipe luxo e riqueza

          Parte importantíssima de um festival é a gente que o habita e que faz as coisas acontecerem. Em Primavera do Leste, o vai-e-vem humano é tão importante quanto a fruição artística. Em um formato raro, organizado talvez por necessidade, como acontece na maioria das experiências vivas, o festival organiza uma equipe admirável. É um pessoal “luxo e riqueza” não só porque realiza suas tarefas com eficiência – essa máxima do mundo mercantil que nos objetifica sem que percebamos. É uma equipe admirável porque ali ainda podemos ver um tipo de compromisso raro com o fundamento das coisas. Ou, como disse Paulo Freire, seres humanos interessados na razão de ser daquilo que fazem.

          Talvez por isso seja inspirador vê-los, vê-las, nós, trabalhadores e trabalhadoras do teatro, cumprindo o corre das várias funções. São artistas e são professores e professoras, receptivos, motoristas, produtores, cameramen, designers, bilheteiros, apresentadores. Tudo ao mesmo tempo agora. O Velha Joana é um time de craques, daqueles e daquelas que jogam em todas as posições e com brilho nos olhos. Não é elogio vazio nem ode ao esforço duro, é uma percepção óbvia diante de trabalho tão compromissado. Este deveria ser o princípio que nos orienta na criação, na pedagogia, na apreciação da arte, no apoio logístico para que tudo aconteça. Então, é preciso agradecer e respeitar essa ficha técnica que vem bem aí abaixo, caro leitor e cara leitora.

          A esses e essas somaram-se as mediadoras e mediadores convidados. Diante de um festival gigante, o cansaço não venceu o talento para a mediação de Andressa Batista, Camila Zenzele, Dani Valério, Thereza Helena e Vicente Concílio. Sim, a mediação exige talento especial, ainda mais quando o que precisa ser mediado envolve crianças, jovens e artistas em formação. Não basta saber olhar e identificar questões; é preciso saber expressar o olhar de maneira que a crítica eventual seja parceira e não bombinha nos pés de quem está brotando ou tentando se afirmar. O que aconteceu nestes dias, nos encontros dos grupos com esses profissionais, foi isso: conversas e escutas abertas com chaves sempre fraternas, sem descuidar, quando necessário, de recomendações que eventualmente podem ajudar no crescimento. A mediação é uma rega, e o grupo de mediadores cuidou muito bem disso. Não faltou poda, mas a água estava sempre lá.

          Por fim, é preciso considerar, correndo o risco do clichê, que o festival foi uma celebração da diversidade – esta palavra bonita, mas escorregadia, porque o diverso não pode ser um valor em abstrato, sob o risco de esterilizar-se. Há, na cena brasileira, vários festivais que festejam o “diverso” como quem inaugura um supermercado da cultura, esperando que a diversidade represente um valor por si. No caso do Velha Joana, o valioso é que a vocação para a defesa do pertencimento geral que está em movimento não abandona pontos de vista, recortes e posições identificáveis e afirmadas sobre a nossa convivência. É isso o que qualifica e politiza a diversidade. Esta talvez seja a melhor notícia. Vida longa ao Velha Joana, um acontecimento – no sentido comum e também no sentido performativo do termo – a ser celebrado.

O 19º Festival Velha Joana aconteceu de 7 a 16 de novembro de 2025, em Primavera do Leste (MT).

Ficha Técnica

Realização: Associação Cultural Teatro Faces; Prefeitura Municipal de Primavera do Leste, através da Secult – Secretaria de Cultura, Lazer e Juventude; Ponto Faces de Cultura; SECEL – Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer; Governo do Estado de Mato Grosso.

Produção: Teatro Faces, Teatro Faces Jovem e Grupo Primitivos.

Apoio: Cooperativa Sicoob

Coordenação Geral: Wanderson Lana e Ana Dorst

Produção Executiva: Ana Dorst

Mostra Oficial: Kiko Sontak

Mostra Regional: Jeisy Sá

Mostra Panorama: Danilo Carvalho

Alimentação: Raquel Elias

Hospedagem: Darci Souza Junior

Translado Interno e Externo: Dionathan Pessoni

Coord. de Comunicação: Edilene Rodriguez

Iluminação: Gabriel Krusquevis

Apresentação: Alice e Wanderson

Mediador: Wanderson Lana