Existência queer e o direito ao melodrama

por Kil Abreu
Foto: Neres Fotografia

Parte I: Alegorya - O Desfile

            O Festival Velha Joana levou ao público, entre os espetáculos e intervenções apresentados, dois que têm especial interesse no campo da existência dos chamados corpos dissidentes: a performance “Alegorya – O Desfile”, projeto da primaverense Alice Anayumi, e o espetáculo “Sebastião”, do grupo manauara Ateliê 23.

            Ainda que sejam em quase tudo diferentes quanto à linguagem, são trabalhos dedicados a mostrar, refletir, protestar no mesmo campo, o das condições sociais, existenciais, das comunidades LGBTQIA+. São montagens alinhadas a uma visão de militância nas artes alinhada com o que se convencionou chamar de políticas da identidade, empenhadas em colocar no primeiro plano do debate o lugar social, os impasses e questões de pessoas marginalizadas, História afora, devido à sua posição de gênero, comportamental, sexual, étnica ou racial. Em um país desgraçadamente homofóbico, transfóbico, xenofóbico, misógino e racista como o nosso, são segmentos sociais que nas últimas décadas substituem ou matizam o dissenso político baseado nas diferenças entre classes para reivindicar que as disputas de valores e de poder joguem luz sobre causas determinadas.

            Estes dois trabalhos apresentados no Velha Joana são trubutários, no teatro, desta pauta e da prospecção artística que ela abre. Mobilizam, na sequência das suas questões, as soluções estéticas que neste momento também são, podemos dizer, a tarefa que se colocam artistas e grupos de artistas, Brasil afora, em um amplo raio que vai da cena comercial ao teatro experimental. Todo mundo está discutindo as identidades. Há, como sempre há, por trás desta tendência majoritária, uma série de contextos e perrengues – históricos, teóricos – que problematizam entre outras coisas a departamentalização da política. Mas este é um tema de difícil contorno, não vamos falar sobre isso aqui, ainda que os impasses estejam lá. Vamos seguir na empatia e na aderência, porque é o justo.

Foto: Neres Fotografia

Performance-Desfile

            Em um livro hoje clássico a respeito das relações entre roupa e sociedade (O espírito das roupas), Gilda de Mello e Souza escreveu sobre como a moda do Séc. XIX, assim como hoje, não servia apenas como artefato estético. Lá ela apresenta a moda como um complexo produto da cultura, em alguns aspectos que certamente interessam aqui. A roupa sempre está atada a relações de poder, através dos usos do corpo como suporte e dos gestos como extensão do status social gozado por quem a veste. A roupa constrói e sublinha identidades e convoca os lugares de gênero. Naquele momento o que está no horizonte de discussão da autora é, especialmente, a posição da mulher e de certa ideia sobre o papel de instituições como o casamento e sobre o feminino. Hoje, essa percepção se estende a outras perspectivas na discussão sobre gênero, e está francamente abordada em um trabalho como o que assistimos.

            Nessa direção, antes mesmo de chegarmos nos belíssimos figurinos de Alice Anayumi é preciso desfazer um tanto do preconceito que formamos e alimentamos ao encontrar um movimento gay-trans não só relativamente organizado como também, ao que parece, atuante, no interior do Mato Grosso. A burrice nasce quando criamos a fantasia de que questões do mundo trans-lésbico-gay são fundamentalmente questões dos grandes centros urbanos. Como se não vivêssemos, tod_s, indistintamente, sob os mesmos processos históricos de exclusão pela via do moralismo epidêmico. Com a diferença, talvez, de que quanto mais conservador o lugar, maior a chance de a violência ser dobrada. O que não só justifica como ainda reforça a possibilidade de termos movimentos trans – visíveis ou invisibilizados – em uma comunidade indígena no interior do Pará ou na cidade de São Paulo. Na conservadora Curitiba ou em alguma cidade localizada no cinturão do agronegócio.  As demandas que movem as pessoas nesses diferentes espaços sociais não são rigorosamente as mesmas. Mas as razões  que nos levam a reagir, sim, estas são comuns e estão enraizadas em nossas formas de convivência.

            O trabalho de Alice com seus, suas parceir_s, é de uma simplicidade e de uma sofisticação desarmantes. É, essencialmente, um desfile de moda. Mas é também um exercício performativo através da criação visual. E como toda criação nessa área, tem conceito, apresentado assim pela artista: “Alice seguiu a onça até a sua toca, lá, no fundo da poça, ela viu o reflexo dela e das outras que a acompanham. Estado de maravilha é terreno fértil em nossa cabeça. Substantivo de vida. Vida em abundância. ALEGORYA é moda, artes visuais, performance, diversas linguagens”.

            Assim, do desfile dedobram-se funções políticas e artísticas prenhes de posições e intenções. Alice é como o narrador de Guimarães Rosa apresentado no conto Meu tio, o Iauretê. É alguém que descreve e reflete a resiliência e a tensão no olhar e nas atitudes de uma onça sobreviente ao mesmo tempo em que ela mesma, a narradora, transforma-se em onça. Esta imagem não é apenas uma ilustração acidental, ela está em cena.  No trabalho de Nayumi como pintora, assim como na performance, essa representação da fusão entre pessoa e natureza é uma das chaves simbólicas. 

            Do tupi, “Iauaretê” quer dizer “onça verdadeira”. Aqui também, esse encontro entre imaginação e verdade é motor e indica o lance performativo que o desfile desenvolve e celebra. A performance, embora tenha muitas traduções, é, essencialmente, a operação de  aproximar a arte da vida, de confrontar o símbolo com a sua verdade mais imediata. Em Alegorya é isso o que acontece: os corpos que desfilam em trajes elegantemente conduzidos pel_s performers , ainda que nos cheguem munidos de grande teatralidade já não são inteiramente “representação”, mimese, imitação. São a própria coisa, no sentido amplo do ser. Aí entendemos, em ato, o conceito anunciado pela artista: “um desfile que resgata as cores e histórias do nosso território, com as nossas pessoas como protagonistas dessas narrativas”.

            Destas observações podemos partir para a afinação, que nos chama a refletir sobre o sentido de todas essas expressões. Elas não são gratuitas e apontam camadas ainda mais fundas daquilo que chamamos identidade: a ideia de que não são atuantes genéricos e sim os de um território determinado, com protagonismo das gentes trans-gay-travestis daqui, organizadas sob uma diretriz forte: são as nossashistórias e perrengues. Esta descrição do pertencimento como arma recupera definitivamente as dimensões particulares do que foi roubado. Porque é isso o que acontece quando estas comunidades são violentadas. A cada ataque contra um corpo dissidente o que se massacra não é apenas  o corpo físico, é a própria subjetividade. O que a intervenção dess_s artistas faz é repor o que foi sequestrado por séculos de submissão pelo poder da moral hegemônica, que em nosso caso não é outra coisa senão uma das estratégias de mando do capital sobre a vida. 

            A ideia de alegoria/alegorya é interessante se confrontada com a intervenção do pessoal de Primavera do Leste. Em literatura e nas visuais alegoria é uma figura de linguagem que dramatiza concretamente um conceito abstrato. E é também uma expressão conhecida da cultura popular, ligada ao carnaval, especialmente no ambiente dos desfiles de escola de samba. Também aqui alegorias são as imagens do enredo. São as soluções cenográficas propostas na dramaturgia, na narrativa do desfile.

            Em Alegorya- O Desfile o que se diz, o que se conta, está centrado menos no verbo e mais diretamente nas imagens visuais. E o que são as imagens, nesse caso? O desfile de moda coloca para “evoluir” em cena os corpos que desenvolvem o conceito-enredo pensado pela criadora e suas atuantes. Um a um, uma a uma, entram na passarela vestindo figurinos, portando objetos e indumentárias que sugerem, em leituras livres, aquelas proposições de pensamento. Na apresentação do Velha Joana o arremate dramatúrgico veio em pontuações textuais. Por exemplo, na participação feita pela diretora e professora Camila  Zenzele em um manifesto poético-afetivo. Apesar de breve, é uma pontuação importante. Sinaliza que a montagem pode assimilar delicadas suspensões e provocar estranhamento crítico na narrativa tradicional do desfile sem sacrificar o fundamental da proposta. A chave performativa traz essa qualidade, a estrutura permanece, em tese, pronta a adaptações e reescrituras, a depender do contexto.

            Entre as tantas possibilidades de leitura que são oferecidas, propomos uma que tende a articular pesquisa estética e posição política, eixo do trabalho. O desfile d_s modelos lembra um pouco as ideias do filósofo espanhol Paul B. Preciado. Preciado, batizado como Beatriz Preciado e depois da transição de gênero autoassumido como pessoa não binária, acompanha a tese, já enraizada nos estudos clássicos de gênero, que o gênero é uma construção social e está no rol das disputas de poder que vão além da sexualidade. Indo adiante, Preciado mostra como o sexo é uma construção não só social também “tecnológica”, o que abre espaço para práticas experimentais  não colonizadas com o corpo, agora operadas (a palavra é boa) deliberadamente pelas próprias pessoas que têm suas existências enquadradas e alvos das políticas de vigilância e punição.

            O trabalho de Alice Anayumi e sua trupe não pretende essa radicalidade. Mas está em sintonia com o seu princípio. O desfile a que vimos mostra que as representações dos corpos pode encontrar, como intui Preciado, tantas construções quantas forem possíveis. É uma perspectiva desnorteante mesmo para pessoas gays. Não será surpresa se notarmos, se sentirmos que as diversas alegorias físicas e comportamentais a que assistimos – ou seja, as diversas performances – não raro nos colocam diante de um gosto pelo enquadramento. Assim, parece natural que imaginemos: essa pessoa que passa agora, ela é gay cis? Ela é travesti, ela é drag? Ela é homem ou mulher trans? E por aí vai. O enquadramento nos apazigua, embora também seja só outra forma, às vezes aparentemente dócil, de violência.

            O rico debate que aconteceu depois da apresentação deu conta de afirmar todas essas frentes. O desfile-performance nos diz entre outras coisas que os resultados artísticos estão precedidos de lutas históricas e de tarefas imediatas, cotidianas, urgentes, ligadas à sobrevivência ordinária das pessoas trans em Mato Grosso, no Brasil. Na simplicidade honesta e complexa da sua proposição, “Alegorya – O desfile” nos coloca na encruzilhada vibrante que mistura, como uma provocação e como um chamado, todas estas questões. Isto, talvez, também faça parte do seu provocativo devir-onça. 

            No próximo texto sobre espetáculos de inspiração queer apresentados no Festival Velha Joana vamos tratar de Sebastião, montagem do grupo Ateliê 23, de Manaus (AM).

Alegorya – O Desfile foi assistido no 19o. Festival Velha Joana de teatro, no Centro Cultural Evangeline A. Takeuchi, em Primavera do Leste (MT).

Ficha Técnica

Direção Criativa – Design e Concepção – Alice Anayumi

Costuras por Dalva Araújo e Márcia Galtieri

Produção Criativa – Fernanda Martins e Alejandro Augusto

Assistente de Produção Criativa – Anny Santos

Produção de Elenco – Gladston Gritowisk

Maquiagem – Alice Anayumi, Gladston Gritowisk, Kayane Ribas, Ally Brown, Paçoka, Marcos Matos, Sávio Gibson

Assistente de Passarela – Pâmela Ferrari

Sonoplastia – Marcos Matos

Luz – Rodsley Gomes

Intervenção Poética de Alice Anayumi, Edilene Rodrigues e Camila Zenzele

Modelos: Ally Brown, Allan Bottega, Alice Anayumi, Ana Carvalho, Anny Santos, Camila Lima, Camila Zenzele, Edilene Rodrigues, Elida da Silva Cruz, Fernanda Siqueira, Fernanda Martins, Gladston Gritowisk, Gustavo Castanho, Halejandro Augusto, Letícia Gabrielly, Michelly Alves, Michelle Martins dos Santos, Nathânia Carbonato, Nathan Silva, Paçoka, Rannykelly, Rian Vieira Freitas, Valter Meira