Esta crítica não pretende discutir verticalmente as boas questões de linguagem do espetáculo ¡Cerrado!, do grupo Pano (São Paulo), apresentado no festival Velha Joana. Vamos explorar aqui alguns aspectos da encenação e, sobretudo, da recepção, para propor um argumento determinado.
O espetáculo do Pano causou uma mobilização grande da plateia em Primavera do Leste. Reagimos com grande, manifestado entusiasmo nas mais de duas horas de representação. Isso nos diz sobre uma coisa importante e sempre buscada pelos artistas de teatro: o espetáculo “funciona”, no capítulo do seu efeito.
Passado aquele momento e assentadas as ótimas impressões iniciais, vamos procurar agora fazer o caminho de volta e discutir algumas hipóteses quanto aos modos deste funcionamento.
Na sequência da apresentação, ao participar ou ouvir de orelhada as conversas sobre a montagem, notamos que quase invariavelmente as pessoas referiam-se ao que foi assistido nessas bases mesmo – comentando questões de ordem técnica, de desempenho, de linguagem ou relacionadas ao efeito. Por exemplo, falávamos sobre a qualidade do elenco, a formidável energia empregada sobre as tábuas, sobre as soluções cenográficas, a estranheza convidativa da forma. Mas, salvo engano, junto às reflexões em torno da encenação havia algo que chamava a atenção não porque estava nas falas, mas, ao contrário, justamente porque não estava: em geral ninguém se referia aos assuntos de fundo disparados pela dramaturgia.
Não é que esta seja uma condição, uma obrigação de todos os teatros. Como sabemos há muitos experimentos que nem mesmo têm assunto, são fundamentalmente jogos com a linguagem, e está tudo certo. É que aqui estes são os termos indicados pelo próprio espetáculo, na sua caudalosa retórica. O verbo é abundante em cena. Daí que, por contraste, surpreende a nossa perceptível afasia. O que é, afinal, que o espetáculo diz?
Surpreende também porque trata-se de uma dramaturgia francamente politizada, com interesse em debater, do seu jeito próprio – em emblemas, metáforas e em uma vigorosa vivência clownesca – questões sobre o colonialismo na América Latina. Ou seja, se os temas existem e são – supomos – tão fundamentais quanto os modos de linguagem usados para articulá-los, por que não os alcançamos? Por que nos nossos debates eles não aparecem pautados, junto com o efeito sensível que a cena causa? Dá o que pensar.
Para ajudar nesta avaliação, chamemos a sinopse apresentada pelo grupo.
“Um continente onde os colonizadores chegam tapando um determinado abismo, o qual as montanhas originais sabiam ter que ser observado. Foi a partir desse buraco tapado pela civilização colonial que se funda a cidade fictícia de San Pablo del Desierto, uma cidade de vícios, virtudes e constante contradição. Nesse contexto, um guia turístico que vive sob condições precárias, se cansa de sua miséria e decide fazer um feitiço de desencanto para que seu negócio prospere. Desse feitiço nasce um boneco de sua garganta, tirano de si mesmo, que irá comandar a cidade e acabar por regulamentar a dança e as festas de maneira restrita, para não atrapalhar o turismo da cidade”.
Por aí notamos que desde a apresentação da narrativa há já uma pauta de assuntos indicada em imagens emblemáticas: processos de colonização, abismos históricos, a dialética entre lugar e moral e as marcas que sugerem um sistema social definido em expressões como “negócios”, “miséria”, precarização da vida. E há também referências a um feito mágico, na direção da transformação do real – a decisão por um “feitiço do desencanto”.
Em uma aproximação provisória, a dramaturgia do diretor Caio Silviano lembra um pouco as arquiteturas textuais selvagens e descentradas de um grande autor e encenador, não por acaso tomado como incompreensível e escanteado pela crítica, o amazonense Francisco Carlos. Em Francisco, como aqui, os temas são influenciados pelos estudos antopológicos, históricos e etnográficos. E traduzidos em uma escrita que a um só tempo assimila e contesta as tradições da “peça de teatro”, inventando um modo singular de representação.
Esta vocação laboratorial está muito afirmada na montagem do Pano. Junto a isso, o espetáculo, falado em português, em espanhol e em “portunhol”, tem clara convocação militante sem se confundir, porém, com um teatro político strictu sensu. A seu favor o diretor tem um elenco 100% disponível, que mostra em cena empenho extra-ordinário nas variações físicas e comportamentais da palhaçaria, em diálogo estreito com a narrativa iconoclasta. A direção musical de Marco França é, como sempre, uma garantia. O plano visual apresenta, sob uma luz espetacular, máscaras, indumentárias, figurinos e objetos que remetem aos elementos das culturas populares latinas. É uma liga bonita e virtuosa. Sem dúvida, uma tradução bem afirmada do que chamamos traballho de grupo, no melhor sentido da afinação que só a experiência coletiva pode oferecer.
Apontadas estas qualidades, voltemos ao nosso “problema”. Belo é discutir problemas, nos disse Brecht.
Supondo que a reação das plateias seja em geral próxima do que aconteceu em Primavera do Leste, a pergunta é agora recolocada com um passo adiante: por que amamos a performance cênica mas temos dificuldades em falar sobre o que ela está propondo pensar? Certamente não dá para creditar, não neste caso, o abandono da leitura em função de uma suposta “abertura poética” do texto e da encenação. Ou até dá. Mas aí salvo engano jogaríamos fora a criança junto com a água da bacia. Porque assumiríamos que o espetáculo é tributário de uma linhagem irracionalista, nos termos em que um crítico como Anatol Rosenfeld apontava nos anos de 1970, quando os embates entre corpo e razão geraram discussões apaixonadas no meio teatral.
Ele usou a expressão “irracionalismo epidêmico” para definir um modo de fazer teatro que se disseminava naqueles anos. O modelo era o grupo americano Living Theatre e toda a cena da “desrepressão” pelo corpo e pelos sentidos, que demarcou o espaço de uma “política dos instintos”, da espontaneidade liberta. Ou do que viria a ser o “te-ato”, a cena dionisíaca, nos termos de Zé Celso e do grupo Oficina. Anatol opunha esse tipo de experimento à necessidade de um teatro de intervenção direta, urgente, diante da violência da ditadura.
Naturalmente, em nosso caso é preciso abrir as janelas desse enquadramento. Antes de tudo porque seria extemporâneo, as conjunturas sociais e estéticas que inspiraram aquelas formas e aqueles enfrentamentos não são as mesmas (embora aqui e ali ensaiem o retrocesso). Depois porque há uma operação construtiva muito rigorosa no trabalho do Pano, que parece espontâneo mas tem uma disciplina formal bastante evidente. Ainda assim, o que talvez interesse nesta percepção do Anatol, se ela for contrastada com o espetáculo, é verificar não o departamento em que a montagem caberia, mas de que maneira aquele impasse entre razão instrumental e razão poética sobrevive, no panorama de uma época particular, a nossa. Uma sociedade em que o descentramento da atenção e os modos de significar são incrivelmente complexos.
Assim, não importa que não tenhamos a chave pronta para abrir essa porta. Mas é útil, diante deste ¡Cerrado!, pensar tanto no sucesso do efeito quanto na suposta, presumível, “falha” essencial da montagem. Qual seja: o que acontece quando, a despeito de a obra nos mobilizar, esta mobilização é fundamentalmente sensorial, quando o ponto de chegada são temas de ordem política, da convivência coletiva?
Nesta direção, há um dado curioso, que pode ser lembrado na nossa experiência como espectadores ali: o espetáculo é em geral bastante estrondoso. Isto não é, por s,i bom nem ruim. É uma proposição formal como qualquer outra. No entanto, se estivermos ligados vamos perceber que há dialética no rebumbo, sobretudo na parte próxima ao final, em que a ironia cômica, a bufonaria, a super-representação assumida como tal, caminham rumo ao patético. Então não seria exagero dizer que o espetáculo nos toma tão fortemente pela sua sedução festiva, visual, sonora, que acaba por atropelar a própria sintonia fina, os contrastes que também estão lá e que só poderiam ser lidos em atitude mais repousada da plateia, algo àquela altura impossível, pois isso é pedido quando já estamos totalmente imersos na deleitosa explosão dos apelos. Um ouvido mais atento, lá pelas tantas, perguntará: mas do que é mesmo que se está falando? Se a pergunta existe, a conclusão lógica é que o espetáculo oferece um banquete aos sentidos, mas talvez pague um preço alto ao nublar seus pontos de chegada.
Para terminar assumindo o risco de cair no personalismo, reproduzo o breve diálogo que tive com um amigo crítico que já havia assistido ao espetáculo:
– Achei desmedido, irregular na forma (não no efeito, 100% teatral) e muito fresco, tudo no mesmo pacote.
– Exatamente isso! Barroco, over e vivo.
¡Cerrado! foi assistido no 19o. Festival Velha Joana, no Teatro Municipal de Primavera do Leste (MT), em 10 de Novembro de 2025.
Elenco: Amanda Quintero, Cecília Barros, Ian Noppeney, Rafael Érnica, Alice Guêga, Bernardo Bibancos, Henrique Reis, Juliano Veríssimo, Barroso e Gabriela Sugui
Diretor e Dramaturgo: Caio Silviano
Direção Musical: Marco França
Direção de Arte: Cecília Barros
Iluminador: Lui Seixas
Máscaras: Rafael Érnica e Caio Silviano
Composições: Caio Silviano, Barroso Eus e Bernardo Bibancos
Cenotécnico: Pity Santana
Aderecista: Zé Valdir Albuquerque e Amanda Quintero
Orientação de manipulação de bonecos: Marcela Arce
Aprendiz: Marcela Lívier
Apoio de Palco: Isabela Lourenço | Lou e Marcela Lívier.
Direção de Produção e produção executiva: Isadora Petrin (PiTô Produções)
Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes
Equipe de vídeo: Pedro Morales, Luiz Felipe Aranha, Rodrigo Nelli
Foto: Leekyung Kim
Apoio: Turma do Bem
Realização: Grupo Pano, Cooperativa Paulista de Teatro, 18ª edição Prêmio Zé Renato e Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo