Sebastião, o espetáculo do manauara Ateliê 23 apresentado no Festival Velha Joana, é inspirado no livro de Bosco Fonseca, “Um Bar Chamado Patrícia – Relatos do Início do Movimento Gay em Manaus” (Editora Reggo, 104 páginas). Ali o autor amazonense narra as impressões e experiências da vida gay em Manaus nos anos da ditadura civil-militar brasileira, durante a década de 1970 até 1979, quando o bar foi fechado. Nas palavras de Fonseca, em meio à barra pesada do regime de exceção o Patrícia tornou-se o paraíso de corpos e comportamentos fora da ordem: “Nós descobrimos, no Patrícia, uma liberdade para voar. Queríamos abrir as portas e mostrar os nossos talentos”.
Não será difícil supor que o setentismo deste material de origem tenha fundas influências sobre o espetáculo do Ateliê 23, ainda que a cena do grupo seja demarcada, mesmo como homenagem, por uma abordagem contemporânea da vida e existência gay.
Certa vez o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu – um ícone entre as pessoas gays que foram jovens nos anos de 1980 e adiante -, perguntado sobre como via a representação dos seus contos no teatro, disse-me que nem sempre tinha simpatia pelas encenações. Mas ressalvava que compreendia o fato de muitas dessas montagens serem mais “noturnas” que “solares”. É que a conjuntura da época daqueles escritos – criados na rebordosa daqueles anos – mantinha, por necessidade, a bad trip e o gosto amargo da repressão, mesmo quando já estávamos no período da abertura política.
Mas, por que apontar aqui este aspecto em particular? É que, supomos, ele tem muita importância na fatura estética e, sobretudo, nas estruturas de sentimento que o espetáculo dispara. É algo que move a teatralidade e parte dos seus efeitos. Sem demérito às qualidades plásticas, aos recursos cênicos e ao rendimento mais que empático do elenco, propomos verificar a hipótese de que o trabalho faz um caminho que vai da festa ao melodrama, algo muito significativo tanto do ponto de vista estético quanto da forma curiosa de afirmação política que pode ser notada a partir da encenação.
A peça recria, em síntese, o ambiente do que foi ou poderia ter sido o Patrícia, em um jogo que mistura música, performance, encontro festivo e show de inferninho. Demandas políticas, afetivas e relatos pessoais ganham as tábuas, sob o olhar da plateia, convidada aqui e ali a se manifestar. A construção de personagens é menos importante que a vivência performativa da trupe. A caracterização não tem interesse no acabamento das composições, no sentido clássico, e sim em desenhar cada tipo através de traços rápidos e marcantes. Isso tem muito a ver com a cultura drag e seu gosto pelo chiste rápido, pela ironia e autoironia. Mas as entradas “particulares” não apagam o sentido solidário de uma representação coral. Alguém já disse: ao fim e ao cabo às vezes parece que temos todos a mesma história. E é verdade.
Temos notícia de que a peça é um sucesso em Manaus. E não duvidamos disso. O poder de mobilização do espetáculo é típico das cenas de intervenção. O agitprop gay, se bem vivo como aqui, é algo que quando acontece tem muitas chances de animar o moral das tropas e, podemos mesmo intuir, é capaz de acender também a simpatia de pessoas não gays. Teatros coletivos que encham suas plateias é sempre ótima notícia. Ainda mais em se tratando dos teatros do Norte, que vivem quase sempre à mercê de políticas públicas fracas e inconstantes. Todas essas são frentes importantes.
Dito isso, é preciso falar um pouco sobre a política do bom efeito. O que corresponde a uma constatação e a uma pergunta: já sabemos que a obra funciona, provoca empatia e entusiasmo. Agora, na sintonia fina, é preciso pensar sobre o que é que o efeito mobiliza.
O crítico Guilherme Diniz abriu um bom debate nesta direção. Escreveu sobre a montagem depois da apresentação no último festival de Curitiba. Em um depoimento não muito favorável, Diniz levanta alguns pontos: a relativa alienação da dramaturgia, que praticamente apaga o contexto sociopolítico que teria inspirado a encenação, dedicando-se fundamentalmente à festa e aos relatos íntimos em torno das dores diante da homofobia; e, consequência disso, o apelo melodramático que ocupa parte considerável da encenação.
Quanto ao primeiro aspecto, o argumento de Diniz pode sem dúvida soar como enquadramento e pode levar à sempre renovada questão: a peça deve ser avaliada pelo que é ou pelo que nós, espectadores, queremos que ela seja? Este é um fino liame, delicado, que pode transformar em patrulha uma observação útil. No entanto, no caso, também parece factível, como propõe o crítico, perguntar pelos contextos próprios de emergência daquela “dor Sebastiana”. Perceba-se que não se trata de desconhecimento sobre as porradas que levamos e continuamos levando em um país miseravelmente homofóbico como o nosso. Trata-se, ao contrário, de aprofundar os contextos sócio-históricos que permitiram e permitem que a dor exista. É, de fato, uma discussão importante se não quisermos nos render à ideia despolitizante de que a submissão de corpos e comportamentos faz parte da natureza humana, de relações de poder intransponíveis. Apontar minimamente os processos e lutas que oportunizam a existência dos guetos é uma maneira de fazer do enfrentamento algo.
Diante do espetáculo esta questão importa. E é essencial para iluminar outra, que está inscrita na forma da montagem: a escolha do melodrama como instrumento político da linguagem. O último quarto do espetáculo é quase inteiro dedicado à apresentação das dores de ser Sebastião.
Embora não devamos falar em estrutura melodramática, há ali, sim, uma muito espraiada tonalidade melodramática, com aproveitamento de algumas características clássicas do gênero. Por exemplo, a disposição para apresentar o embate entre sujeito e sociedade como uma luta do bem contra o mal. Embora ninguém precise advogar que trata-se de uma briga assimétrica entre opressores e oprimidos, o retrato dos enfrentamentos, representado nestes termos, tende ao maniqueísmo e à dispensa dos questionamentos: por que isto é assim?
A expressão profundamente emocionalista dos intérpretes nestes quadros tendem a aprisionar as questões na cela do debate moral. Não à toa, se observarmos os impasses da convivência coletiva hoje veremos sem esforço que a moral é o espaço certo para a evolução do pensamento conservador. Pensemos então na possibilidade de o efeito do espetáculo ser baseado fundamentalmente em uma reatividade conservadora, não transformadora. Em outras palavras, é mais fácil ter pena e compaixão diante de uma bicha violentada que sentir-se movido a aliar-se racionalmente contra a injustiça que ela sofre.
Por outro lado, sem dispensar essa problemática, é útil fazermos o caminho de volta e matizar o juízo. Entre outras coisas, se considerarmos a inequívoca vocação do espetáculo para uma abordagem direta dos seus temas, veremos que a performance melodramática oferece ganhos. Um grande estudioso do gênero, o crítico americano Peter Brooks (não confundir com o diretor inglês Peter Brook), nos diz que o melodrama não é apenas uma forma. É uma linguagem que provoca quase que inevitavelmente o engajamento do espectador – o que para uma cena como a do grupo de Manaus, que não quer falar sozinha, é boa notícia. Depois, diz ele, com o melodrama ganha-se em clareza e objetividade quanto aos pontos de chegada da representação dos valores que estão em disputa. A falta de dialética é compensada pela afirmação de pontos de vista que dispensam rodeios. Não à toa são artifícios quase sempre de grande repercussão popular.
Por fim, ainda é preciso considerar que a despeito da relativa falta de profundidade e do uso de estruturas já assimiladas na tradição do teatro e do show de variedades, nós estamos, paradoxalmente, diante de algo fresco entre nós, que só agora começou a ser explorado no volume justo e necessário: a emergência de uma cena das pessoas veadas, lésbicas, trans. Não é que o teatro LGBTQIA+ comece agora, mas sem dúvida este é um momento histórico em que a sua afirmação é mais evidente que em qualquer outra época. Daí a ideia de que trata-se, antes de qualquer coisa, de um direito. Então o melodrama é um direito. É um direito dessas (nossas) comunidades ocupar as tradições de linguagem da cena teatral, da dança, da performance. Nos últimos anos ele tem sido exercido vigorosamente. Em São Paulo, por exemplo, de onde este crítico escreve, está em cartaz neste momento uma “Antígona travesti”. Uma Antígona adaptada e encenada só por travestis e mulheres trans.
Então estamos falando, diante do trabalho do Ateliê 23 tanto quanto da montagem coordenada por Renata Carvalho, de uma ocupação. Uma ocupação das dramaturgias e dos imaginários. Uma ocupação das formas antigas, clássicas, modernas. Ou da criação de formas ainda não inventadas. Trata-se, portanto, como em qualquer gesto artístico, também do direito de dar com os burros n’água, total ou parcialmente. É algo que repercute na estética mas está em todo o seu entorno e além. Nesse sentido o Sebastião dos amazonenses não é obra perfeita, mas está, com melodrama, com tudo, no melhor e mais justo caminho.
Sebastião, com o Ateliê 23 (AM) foi assistido no 19º. Festival Velha Joana, no Teatro Municipal de Primavera do Leste (MT), em 12/11/2025.
Elenco: Taciano Araripe Soares, Eric Silva de Lima, Madirson Francisco Souza, Anderson Ferreira Carvalho, Elias Freitas de Souza, Jorge de Souza Sabóia, José Holanda dos Reis Junior; Musicista: Bruno dos Santos Rodrigues de Arruda, Guilherme Bonates dos Santos, Luana Marina Aranha e Silva, Ana Paula Mady; Iluminador: Paulo Martins de Souza Neto; Técnica de Palco: Emily Giovana da Silva Araújo; Direção: Taciano Araripe Soares, Eric Silva de Lima