Entre os espetáculos dos grupos Teatro Faces e Primitivos pautados para esta edição do festival Velha Joana, assistimos nos primeiros dias a dois que têm inegável parentesco tanto nas questões de fundo quanto no acabamento cênico. Os grupos são “prata da casa” e dois dos organizadores da Mostra, junto com o Faces Jovem. Isto, que poderia ser um detalhe acidental, provavelmente passa a ser algo central ao evento. Porque salvo engano as relações entre produção cultural e fatura estética ou, mais especificamente, entre aquilo que estes grupos mobilizam no contexto artístico e formativo da cidade e os seus próprios campos de pesquisa e de pensamento, estão interligados pelos lances da sociabilidade local. É uma percepção inicial, vamos ver se ela permanece de pé até o fim deste encontro em Primavera do Leste.
O primeiro aspecto muito relevante no trabalho das duas companhias é que os trabalhos são visivelmente resultados artísticos característicos do teatro de grupo. O que isso nos diz? Em que difere um espetáculo “de grupo” de outro, digamos, caracterizado como montagem “de produção”?
Não é recomendável apontar departamentos para a criação, porque eles tendem a se misturar e a se dissipar na experiência concreta do teatro. No entanto, os modelos de produção e criação da cena brasileira nos últimos anos nos dizem que em geral os teatros de grupos, quando são frutos de pesquisas continuadas por um mesmo núcleo artístico, têm características próprias. Por exemplo, o fato de o teatro de produção desenvover-se em geral em processos mais breves de criação faz com que esta forma tenda a agarrar modelos estéticos já testados nas tradições de linguagem. Ao contrário, o grupo é quase sempre uma espécie de laboratório do teatro. A ideia de laboratório parece bem adequada. O grupo é o espaço da experimentação, assim como é o espaço do amadurecimento político que qualquer coletivo humano tende a viver quando permanece agregado no longo prazo e não apenas pontualmente.
Salvo engano este é o caso dos coletivos que levantaram estas montagens. Não à toa, essa percepção laboratorial e a valorização da cena grupal estende-se como uma chave à programação inteira do festival, marcada fundamentalmente pela criação colaborativa, seja no aspecto artístico propriamente dito, seja na articulação entre estética e pedagogia – algo também tão evidente e tão valoroso no Velha Joana.
Diante deste contexto podemos passar ao diálogo com os dois espetáculos. Como se disse, em ambos há recorrências notáveis. Têm a ver com inquietações políticas que, em cena, aparecem representadas como ânsias existenciais e dilemas entre escolhas possíveis das personagens. No campo da linguagem estas questões ganham forma em um plano cênico que vai do jogo entre música e visualidade (O menino inventador) e a quase parábola da libertação (Sinhadores). Em qualquer dos casos, há uma evidente aproximação à alegoria. Senão, vejamos.
Neste espetáculo do grupo Primitivos o mote é um garoto “impertinente”, um moleque aparentemente inadaptado ao plano dos adultos, os pais. A questão posta é a da escolha profissional, algo que mobiliza enormemente muito da ansiedade de meninos e meninas no contexto competitivo da sociedade mercantil. Para nós, que escolhemos ou gostaríamos de escolher e viver o caminho da arte, não são poucos os problemas que se põem em um país que nos últimos anos aprendeu a demonizar seus artistas. A peça nos mostra como pais e formadores, muitas vezes também pressionados pelo medo do fracasso deles e das crianças, criam as pressões mais cruéis para que seus rebentos façam escolhas presumivelmente seguras. O Primitivos nos mostra de que maneira esta “proteção” deriva em profunda infelicidade, quando os jovens se vêem diante do dilema: seguir a orientação e a autoridade de pai e mãe ou partir para a conquista do livre arbítrio?
Provavelmente a parte mais difícil e valiosa posta como tarefa para o grupo é fazer a plateia ver e sentir esses impasses sem que sejamos afundados na bad trip (porque a coisa, pensemos, é violenta). E, de fato, a estrutura da dramarturgia tanto quanto a encenação conseguem equilibrar esses dois estados de uma maneira fluida, não esquemática: a ansiedade diante dos impedimentos, mas também o enthusiasmos, como diziam os gregos, que acende de uma maneira própria aquilo que chamamos juventude. É bonita essa dialética que vai da interdição ao enfrentamento, na forma como ela aparece no espetáculo: entre a lira e o movimento inventivo dos cavalos. Ou, em outras palavras, entre a música e os corpos dançantes. Coreografias e figurinos ajudam a performar uma visualidade vibrante, em que as personas “reais” convivem com as figuras imaginadas – quem sabe os parceiros e parceiras íntimas que quando estamos desabrochando para o mundo inventamos, como salva-vidas no mar de insegurança em que ele quase sempre nos joga.
Que essa invenção tenha sido concebida também com humor é algo a ser comemorado. O humor, aliás, é elemento crítico e reflexivo da maior importância no espetáculo, como sempre é.
Creio que ninguém tem dúvida de que “O menino inventandor”, sem demérito ao que já está de pé, ainda pode nos oferecer mais, se o grupo quiser. Pensemos, quanto a isso, em um elemento da maior importância no espetáculo, que não está mal aplicado, tem efeito, mas ainda pode ganhar em originalidade: a trilha musical. Sonhemos, agora nós, com músicas originais ali. Seria um ganho, certamente, não só no aspecto da valorização do frescor que a montagem já tem, como também no aspecto de um reforço na estrutura dramatúrgica, se considerarmos que a música, no caso, é um dos esteios fundamentais da dramaturgia.
De uma maneira ou de outra, mais que uma fábula sobre escolhas, o trabalho do grupo é como uma notícia posicionada e vibrante a respeito da difícil descoberta da liberdade. Não é pouco.
Em certa medida “Sinhadores”, do grupo Teatro Faces, repõe o tema do enfrentamento contra a autoridade, agora no mundo dos adultos. Não seria exagero dizer que, acidentalmente ou não, uma história encontra extensão na outra, o que dá o que pensar.
Em Sinhadores a narrativa é sobre uma aldeia, um agrupamento humano que vive na fome e na desesperança. Mas as causas do estado de falência não estão apenas na falta de sorte ou em alguma dificuldade incontornável diante da natureza. Está, descobrem eles, na administração da miséria por uma figura dúbia, um ser que ora parece uma ícone religioso, ora parece um capataz que vigia comportamentos e ações e assim institui para si um certo lugar de poder. Trata-se de uma personagem não naturalista, que pode perfeitamente significar uma síntese das tantas caras da cultura política que rege há mais de 500 anos a nossa sociablidade, brasileira.
Os episódios descrevem o partir, o voltar daquela gente e as tentativas de escape do aparente desígnio de um destino já escrito. No meio da discussão entre as personagens o que está subliminar são as relações de mando e obediência. No limite, aponta-se também a possibilidade de um salto para fora do fatalismo anunciado e a criação de horizontes não imaginados.
A história contada pelo Teatro Faces, em estrutura de metáfora, não está distante do que vem demarcando, desde sempre mas especialmente nas últimas décadas, as formas de ideologização do desamparo social. Os modos com que se constrói a crença de que a desigualdade é uma condição insuperável. A isso é que chamamos ideologia. A ideologia é o enraizamento da falsa consicência que tende a sabotar as possibilidades de enfrentamento e superação da injustiça.
Sob esse plano de fundo o Teatro Faces constrói um espetáculo em sua maior parte melancólico, como não poderia deixar de ser. A tonalidade quase sempre monocórdica da representação talvez tenha a ver com isso. Lembra remotamente um texto do grande dramaturgo moderno Jorge Andrade: Vereda da Salvação, no aspecto da discussão sobre o messianismo que aliena. Indo além, não por acaso a montagem do Faces nos leva quase que automaticamente a pensar nas relações perigosas entre religião e política que têm atravessado nossas vidas nos últimos anos, quase sempre de forma danosa.
Pensemos agora na alegoria, no sentido imediato da palavra. Podemos dizer que a alegoria é uma figura de linguagem através da qual sentimentos, ideias, razões e argumentos abstratos são representadas concretamente. Nesse sentido, propomos ver ambos os espetáculos dirigidos por Wanderson Lana como alegorias do enfrentamento entre autoridade e liberdade.
Processos como os dos dois grupos tendem a uma colaboração coletiva mais acentuada que em processos de criação do teatro comercial, onde as funções estão mais determinadas. A fluidez colaborativa que provavelmente foi exercitada no Faces e no Primitivos não deve apagar, entretanto, o trabalho individual. E está tudo certo. As práticas contemporâneas de montagem cênica têm nos mostrado uma conciliação muito produtiva entre criação coletiva e tarefas individuais. Assim, em ambos os casos é possível admirar o notável plano plástico dos dois espetáculos, desdobrado em cenografia, luz, figurino e música (sim, a música também é plástica).
Em O menino inventador os cenários e figurinos são do coletivo. A iluminação é de Wanderson Lana e a sonoplastia de Marcione Neves. Em Sinhadores os figurinos são assinados por Ana Dorst e Kiko Sontak. O cenário e a sonoplastia são do grupo e a iluminação é de Gabriel Krusquevis. Em qualquer uma dessas áreas da feitura cênica podemos dizer que os resultados são muito bonitos e funcionais. Tanto no primeiro quanto no segundo caso é uma visualidade original, que se aproxima do popular sem, entretanto, mimetizar de uma maneira naturalista as personagens ou os lugares onde a ação ocorre. São planos visuais que flertam com o popular, mas em criações livres, que não podem ser rigorosamente determinadas. O que quer dizer, se retomarmos a ideia de alegoria, que os espetáculos têm essa qualidade poética em que os elementos cênicos são grávidos de sentidos, mas não de um único sentido.
Isto é importante porque as personagens já têm trajetórias demarcadas e as histórias também se contam em narrativas cujas circunstâncias são suficientemente firmes para uma fruição sem muitas dúvidas quanto ao seu significado. O que o acabamento visual nos oferece, então, é uma compensação generosa a essas determinações. A visualidade dos espetáculos está entre a mimese e a estilização poética. No primeiro caso, com as suas cores vibrantes, os seus retalhos e mágicas luminárias que remetem a uma imaginação efervescente, que é a da própria criança. No segundo espetáculo, com as enigmáticas esculturas de animais que compõem o cenário, o altar/andor que indica a autoridade, as cordas de lâmpadas que, subliminarmente talvez possam ser lidas como signos da razão vigilante. E, sem dúvida, a caracterização do Sinhão, posto em trajes quase eclesiásticos e com um aro à cabeça que remete às figuras santas.
Todos essas ricas provocações ao olhar, somadas ao plano coreográfico em O menino inventador e à marcação em Sinhadores, nos levam a uma constatação que não é lateral: nas duas montagens, junto com o pensamento da criação coletiva que imprime as marcas visuais e a ânima das peças, é impossível não pensar que há uma regência firme e necessária, que garante a sustentação do conjunto. E então essa orquestração deve apontar para o trabalho do encenador.
Comparar o trabalho de artistas não é algo a ser recomendado. Quando fazemos isso na maioria das vezes caímos em reduções e em injustiças. Ainda assim, arriscamos aqui que essas encenações assinadas por Wanderson Lana são irmãs de um diretor brasileiro também importante, Gabriel Vilela. Naturalmente, há aqui e ali alguma correspondência quanto às imagens criadas. Mas não é sobre isso. É fundamentalmente sobre um outro aspecto: o da vocação “barroca” que orienta a ambos. Nos espetáculos dos grupos de Primavera do Leste ela está bem apontada sobretudo na quantidade e qualidade dos elementos que entram em cena, e também no arremate, ou seja, no olhar dedicado aos detalhes, sempre significativos, e na variedade de soluções cênicas, inclusive nas minúsculas, que podem eventualmente passar despercebidas por um espectador menos atento mas que, de todo modo, estão lá.
O que nos parece admirável é que, se estes argumentos estiverem em direção boa, o maior feito do encenador não é exatamente a sempre chamada “unidade” espetacular pedida em trabalhos como esse. A notícia mais importante é que estes arranjos cênicos poderiam perfeitamente nos chegar como frutos autorais e pessoais intransferíveis, mas isso apontaria um personalismo em tudo contrário à criação em grupo. O feito mais valioso do diretor parece ser, então, o fato de que a sua marca como artista está lá, mas em trânsito vivo, somada aos seus parceiros e parceiras de trabalho. Nestes dois espetáculos, dedicados a discutir em suas fábulas as fundas feridas do autoristarismo e da desigualdade entre nós, é uma alegria que os grupos não precisem abrir mão da assinatura conjunta para que o diretor seja reconhecido como um mentor de muita qualidade.
Elenco: Isabela Cassimiro, Gladston Gritowisk, Wellini Izidre, Raquel Elias, Danilo Carvalho, Rafael Pessoal, Rodsley Gomes e Sabrina Nathany. Direção e Coreografias: Wanderson Lana em colaboração com: Camila Wandscheer, Isabela Cassimiro, Gladston Gritowisk, Wellini Izidre, Raquel Elias, Danilo Carvalho, Rafael Pessoal e Rodsley Gomes. Figurino: Núcleo de Produção Primitivos; Elementos de cena: Núcleo de Produção Primitivos; Iluminação :Wanderson Lana; Sonoplastia: Marcione Neves
Elenco: Edilene Rodriguez, Ana Dorst, kiko Sontak, Wanderson Lana, dionathan pessoni, Darci Souza Júnior, Isabela Cassimiro, Marcione Neves, Thalia Quintania; Direção: Wanderson Lana; Texto: Wanderson Lana; Figurino: Ana Dorst e Kiko Sontak; Maquiagem: Elenco; Cenário: Grupo Teatro Faces; Sonoplastia: Núcleo de Música e Sonoplastia do Teatro Faces com Jean Carlos; Preparadora vocal: Simone Miranda; Iluminação: Gabriel Krusquevis.