Antes de começarmos a leitura dos espetáculos, permitam-me, caro leitor, cara leitora, uma aproximação que talvez seja útil para seguirmos no mesmo filme.
Há um sujeito muito importante na história do teatro mundial, um alemão chamado Bertolt Brecht, que entre outras coisas propôs o seguinte: para que a gente “desaliene” o pensamento, ou seja, para que o teatro seja minimamente honesto com o seu contexto próprio, é preciso expor os meios através dos quais ele se articula. O que, acho, pode querer dizer: é preciso ficarmos atentos para que não nos rendamos à aparente natureza “em si” das coisas no mundo. O mundo não é assim ou assado, o mundo está sendo. As pessoas de teatro sabem como mostrar isso no campo da criação propriamente dita. Há entre as técnicas de criação teatral um repertório grande de procedimentos que tentam dar conta desta tarefa, de maneira que percebamos que um teatro verdadeiramente crítico não é aquele em que a posição está apenas no discurso, mas nas próprias formas de produzir a cena e nos modos, assim ou assado, de encontrar a plateia. Um teatro assim pensado é aquele que não apenas representa a realidade, mas mostra ao público, ao vivo e em cores, os meios com os quais o faz. É como se a plateia fosse levada a ver como é que o artesão cria o seu artesanato. E dessa forma notar que o mundo não tem uma “natureza em si”. É mudável. E a mudança, a transformação, depende fundamentalmente de como agimos diante da realidade. Mostrar quais são os termos dessa vida em movimento, dentro e fora da cena, é o que indica a existência de um teatro crítico. É assim que, em resumo, o camarada Brecht nos provoca.
Mas, e daí, Kil Abreu? O que isso tem a ver com a crítica de espetáculos, que não é criação e sim um olhar sobre ela?
Bem, sugiro que é interessante pensar que toda essa coisa aí pode ser inspiradora também para a crítica. Então, permitam-me, antes de começarmos, expor alguns dos meios que, penso, podem ser úteis à nossa missão aqui. À minha, como crítico profissional, e a de vocês que, eventualmente, podem não ser profissionais da crítica, mas são leitores críticos das obras de teatro – coisa que não precisa de autorização para acontecer.
Então proponho, em síntese, alguns procedimentos para exercitarmos nesses dias. Vejam se faz sentido e façam as suas próprias adaptações:
Uma maneira boa de olhar isso em um espetáculo de teatro é observando a forma como arranjo. O que quer dizer, como relações. Formar é, essencialmente, relacionar. Então uma pergunta boa para um olhar crítico talvez seja essa: o que esses materiais, assim formados, assim arranjados, nos dizem – sob o ponto de vista da nossa sensibilidade, da nossa subjetividade, mas também do ponto de vista das relações com o que está fora de nós? Leia adiante.
Conto aqui um caso. Um grande crítico de literatura chamado Antonio Cândido, certa vez foi entrevistado. A jornalista perguntou a ele: qual o seu método crítico? Ele respondeu – “o meu método é simples. Parte do seguinte princípio: eu observo como é que a vaca vira croquete. Porque o croquete é feito com carne de vaca, mas todo mundo sabe que uma vaca não é um croquete. O meu trabalho como crítico é imaginar como a vaca virou croquete”.
Pode parecer engraçado, e é, mas é mais que isso. O que o Cândido está nos dizendo é que toda obra de arte está de alguma forma enraizada nas relações sociais. Assim, há uma coisa muito valiosa lá, que é a autonomia poética. Ou seja, a obra é o que ela é nela mesma. Mas mesmo as obras mais abstratas nascem em um contexto social determinado. Um olhar crítico tem a ver com isso: viver o que um quadro, uma escultura, uma música, um espetáculo, nos dizem como criações livres; mas também observar que essa autonomia não é absoluta. Ou seja, a obra de arte é ao mesmo tempo uma invenção livre e uma forma determinada por fatores externos a ela. Quando o mestre nos diz que é bom observar como a vaca vira croquete, é sobre isso: como é que os fatores sociais “externos”, que ainda não são a obra, se tornam internos. Ele chama isso de “olhar integrativo”. Como é que a forma se forma, caro leitor, cara leitora? Pensemos nisso. Ou seja, exercitemos a nossa capacidade de fazer relações. O convite é esse.
Voltando ao Brecht, é assim, com esses meios, que vamos trabalhar nestes dias de festival. Mais do que procurar dizer se um espetáculo de teatro serve ou não serve, se supre ou não supre a nossa expectativa de espectadores, a tarefa que proponho é tentar fazer relações entre formas teatrais – nos termos aí de cima – e o processo social. De Primavera do Leste, do Mato Grosso, do Brasil. Creio que esse pode ser o caminho para uma aventura interessante. Convido a todos e todas para assistirem aos espetáculos e virem juntos e juntas, nestes ou em outros termos. Embora a crítica seja uma disciplina, um ofício, todos, todas nós somos capazes de articular nossa atitude crítica, basta querer. A leitura crítica não deve ser vista como um conjunto de juízos fechados e sim um jogo do qual todos podem participar. Um jogo em que o barato é movimentar o pensamento, a partir dos espetáculos – em direção a eles mesmos, em direção a nós, em direção ao fora de nós.
Evoé e vamos.